Eu era a Tia Nastácia!
Eu me sentia como ela quando recebi este papel na peça teatral da escola em que estava. Eu tinha 9 anos e assistia o Sítio do Pica-Pau Amarelo todos os dias às 17:30h na televisão de tubo. Chegava correndo da escola, pegava um lanchinho inadequado para antes da janta e sentava na frente da televisão para me sentir parte da turma do sítio. A cada episódio eu me identificava com algum personagem daquele programa. As histórias me tocavam e na minha cabeça eu era um deles. Eu vivia o que eles viviam durante os 40 minutos que durava aquele programa diário.
Um belo dia a professora disse que eu seria a Tia Nastácia na peça da escola e que eu precisava decorar as falas, porque não podia errar. Disse que se eu errasse as falas atrapalharia a peça, a turma, a escola. Ela me disse que era uma grande responsabilidade. Como eu era avoada e vivia brincando mais dentro de mim mesma, mais precisamente dentro do meu campo imaginativo criando ficções, ela me deu um papel com poucas falas. Ela tinha razão! Não me dediquei primeiramente a decorar as falas do diálogo. Me lembro precisamente de estar congelada na frente do espelho reconhecendo minha evidente diferença física da Tia Anastácia e ao mesmo tempo amando minha semelhança emocional com a personagem.
Assim comecei a ter ideias para me parecer com ela. Fui me transformando aos poucos. A cada acessório que ia colocando, logo reconhecia uma próxima ideia. Fui entrando em fluxo criativo e assim a maquiagem me levou a uma peça de roupa, que me levou a um acessório, que me levou a um estado emocional, que me levou a um tom de voz, que me levou a experimentações brincantes, que me levaram a ser a Tia Anastácia da escola. Quando apresentei a personagem montada para a professora pude ver que ela ficou animada, mas logo desanimou quando eu contei que tinha esquecido de decorar as falas. Minha avó me ajudou em casa e eu consegui decorar algumas…porém não todas! Até o dia da apresentação tirei o sono da professora e irritei meus coleguinhas de sala. Até que no dia da apresentação aconteceu algo que até hoje me intriga. A escola toda estava sentada no pátio coberto. O cenário estava montado e pontualmente na hora do intervalo a peça começou.
A personagem da Dona Benta e Emília entram em cena e falam direitinho o texto inicial. Pedrinho entra em cena com as cambalhotas e Visconde de Sabugosa fala timidamente bem baixinho pra ninguém escutar nada. E lá no meio da peça, o grande monólogo de Narizinho estava por começar. Exatamente no auge da grande obra escolar! Ela respira, entra em cena… e CONGELA! Todos ficam esperando, mas nada sai da boca da Narizinho. A professora acena para que possa soprar a fala, mas ela CONGELADA não olha nem pro lado. Percebi que estava assustada e muitas crianças começaram a se cutucar e rir. Um silêncio esquisito e assustador parou o tempo e foi neste momento, não sei como, tive um impulso incontrolável entrando em cena sem pensar. Parei do lado dela e comecei a falar um monte de coisas que eu nem sabia de onde vinham, mas parecia que eu conhecia todos os textos do mundo. E eu deveria saber mesmo porque assistia o Sítio do Pica-Pau Amarelo todos os dias nos últimos dois anos! Parecia que eu tinha um arquivo infinito na minha cabeça que baixava falas instantâneas. Lembro da professora fazer sinal pra eu continuar e eu continuava! A escola toda ria com o que eu falava. Não era de mim que riam… mas riam comigo! Eu era engraçada??! Me senti alegre e viva! Nunca tinha sentido aquilo. Me lembro até hoje da sensação. A Narizinho descongelou, começou a responder e brincar comigo em cena! Inventamos o resto do espetáculo até chegar quase no final combinado. Esta proeza salvou minha vida social na escola. De menina esquisita eu passei a ser a Lu, convidada para jogar pebolim com os meninos (um deles era o saci e virou meu grande amigo), para ir a festas e até trocar figurinhas no recreio. Nunca mais parei de experimentar esta prática de baixar da minha cabeça coisas que reconheço no imediato. Hoje explico esta proeza melhor para as pessoas. Digo que me dedico a reconhecer as imagens do meu campo imaginativo, baixando pro mundo estes conteúdos por meio dos downloads criativos. Aos poucos vou dando contorno para estas ideias se realizarem. Esta brincadeira é coisa que criança já faz e nunca pode perder. É uma prática natural e de nascença. A capacidade de sonhar e estruturar os sonhos no mundo é prática essencial e fundamental na nossa existência. É o princípio da nossa capacidade realizadora. Coisa de criança, adôle, adultos e até dos pterodátilos ancestrais!